Tuesday, April 09, 2024

A Rocha e a Flor

Andava à deriva, espalhada em cacos. Procurava por todo canto a parte que perdera. Precisava se consolar. Era ainda criança a última vez que a vira, não sabia onde havia guardado. Às vezes, o sonho trazia a textura de volta – uma vez chegara a sentir até o gosto, vestígio de algo que não se lembrava mais. Despertava sem saber se jamais havia tido o que procurava, quiçá era mero fragmento de sonho. Mas a agonia do desencontrar sussurrava intermitente durante o passar dos dias. Seguia escutando as vozes de um passado trancado à sete chaves enterradas à sete palmos num jogo de setes que não somava nada, menos ainda subtraia o vazio do espaço em aberto onde algo que não lembrava havia morado. Não conseguia lembrar. Só recordava do nublado daquela tarde estranha e a notícia saindo seca da boca de seu pai. Ele chorava e ela, ainda sem entender coisa nenhuma, lhe deitou em seu colo e deixou que soluçasse sua dor enquanto ela, em silêncio, era esmagada entre o céu e a terra sem que pudesse se mexer mais do que o bastante para protegê-lo da desolação de adulto. Ali, ainda criança, sem saber o que fazer, sentia que não podia chorar – alguém precisava segurar o mundo no peito sem deixá-lo transbordar e afogar em rio. Virou então uma rocha pueril que sedimentava a qualquer vento maior que batia, fingia gargalhar com as cócegas da brisa que a dissipava. Caminhava leve sobre pequenas pedras pontiagudas com o peso imenso de seus passos. Não sobrara muito daquela tarde infantil senão o tanto que guardara escondido em algum lugar mais escondido ainda do que a coisa que esquecera. Não sabia o que havia esquecido, sabia só que precisava lembrar ou achar alguma coisa nova que coubesse naquele buraco que a coisa esquecida havia deixado. Não fazia sentido viver sem aquilo que não sabia o que era, mas que por certo faltava. Então deixava para as manhãs o silêncio de suas rotinas, ocupava suas horas com demandas para todo lado e assim ia atravessando o tempo na tentativa de distrair, sem sucesso, o furacão no centro de seu abismo. Havia um abismo e ela não criara ainda nem pontes nem asas, nem mesmo em seus sonhos dormidos. Descansava na areia movediça das tantas angústias e quanto mais leve pisava mais mergulhava fundo. Era difícil não entornar. Ao se derramar, acabava sempre lembrando da coisa esquecida que quando finalmente encontrada voltaria a dar sentido como quando a tinha, ainda na infância, num bolso qualquer de um vestido antigo que ficara curto demais. Depois daquela tarde nublada perdida no tempo, demorou a voltar a chorar. Quando veio, chegou em torrente e a submergiu no silêncio ruidoso do que não deixara doer o bastante. Havia de doer, cedo ou tarde. E enquanto doía ela não sabia ainda que iria sentir seu couro rasgando a fio, sua pele descascando como cobra, de repente lagosta que crescera demais para casca e ficara sem armadura nenhuma debaixo de pedra virando rocha pueril – ou, se aguentasse, pérola. Era difícil conceber tão precioso destino, o de pérola. Fora despida de tudo que a sustentava mais uma vez quando até sua rocha ruiu. E assim, à deriva, ficou a vagar pelas águas dos segredos que escondia de si enquanto tentava nadar contra a corrente, se segurar em uma rede de pesca, âncora de barco, um pedaço de tronco despejado pela última tempestade – se respaldava em destroços, sentindo-se brevemente segura, e logo a correnteza a jogava de volta no redemoinho dos segredos que guardava de si. Não tinha mar azul que a salvasse das trovoadas sigilosas asiladas à sete chaves enterradas à sete palmos somando zero que não é exatamente a ausência de um número, mas é infinito também. Achava que precisava ser leve e flanar ao invés de fazer o silêncio devido para tentar se escutar. Suas pernas corriam rápido demais, dirigia seu corpo pelo mundo em piloto automático, sem cinto nem tranca, e depois se assustava com a velocidade em que o asfalto corria por baixo de suas rodas estaticamente móveis sobre o chão de céu. O solo quente queimava seus pés descalços e ela alargava o passo querendo ser tão livre quanto achava que era ou que queria ser se conseguisse esquecer que havia esquecido algo que era para ela primordial e ainda assim imemorável. Alguma hora ia precisar parar tudo até a ausência total de movimento e procurar o que esquecera sem distração. Ia precisar se ausentar de todos seus tantos por tempo indeterminado e voltar para a tarde escura em que aquela notícia chegou aos seus ouvidos e seus olhos, boca e a terra pararam de girar. Não era só aquela tarde, era tudo antes também e tudo que vinha depois. Nunca mais fora a mesma desde que perdera algo imprescindível para seguir jornada como o acalanto dos abraços dos que podem chorar juntos o tempo que for sem precisar se constranger ou se desculpar. Precisava parar e poder se entregar para outros braços além dos seus próprios braços que foram seu único abraço naquela tarde em que sua mãe morreu. Já não era mais o bastante. Descobrira aos poucos que precisava de outras ajudas além das que traziam soluções. Procurara guias e encontrara até um certo conforto, mas enquanto não saísse de si e se relacionasse com o outro como um outro que de fato pudesse chorar junto sem se constranger nem se desculpar e em seu abraço pudesse ser frágil como as coisas invisíveis que se derretem umas nas outras por osmose. Se só pudesse contar consigo, não abraçaria nunca nenhum outro senão as feridas de sua própria carne e todos mais seriam apenas meros reflexos de suas cicatrizes. Precisava sair de si e procurar algo novo, independentemente do que fora esquecido naquela tarde porque aquilo talvez nunca mais voltasse, ou talvez nunca houvesse existido, justo por ter virado outra coisa que ela, lá do alto de sua rocha, não conseguia ver – a flor. 

Saturday, April 06, 2024

SALTO

É da ordem do salto, das coisas que vão além. Me deparo contigo e me redescubro. No teu olhar me re-conheço. Não é trivial. Não sabia mais se ainda viveria isso, não sei se já vivi. Não vivi, não desse jeito. Havia perdido a esperança no futuro, me convencido do só por hoje, aceitado o destino e parado de me alinhar com o que guardo em segredo. Me convenci do discurso que criei para me defender. Era só discurso. É porque é difícil sonhar. Talvez o descrédito do que não poderia mais ser tenha erguido muralhas – minha expectativa era o erro. Me induzi o quanto pude a um afastamento do que reservo de mais íntimo. Te reduzi aos meus preconceitos. Cheguei armada e venho tendo que me encarar através da gente, isso me assusta. Hoje você disse que havia esquecido de como sonhar, que acreditar era difícil demais. Eu fiquei confusa. Senti que tinha me jogado justo por ter sentido em você seu desejo de amor, de já estar me amando, para só depois me dar conta que mesmo supostamente “casados” você hesita a se entregar – ainda precisa conversar consigo se é possível regar a ideia de futuro. Havia me contado do conforto da sua solidão e o desconforto da felicidade, mas por tudo que somos juntos, mesmo em tão pouco tempo, achei que você já tinha entrado. Sei que não é tão fácil assim, seu medo é maior. Se a minha máscara é força, o seu recurso é a placidez. Eu titubeio. Achava que seu peito já tinha dado um passo largo e mergulhado na gente, mas ver temor em seus olhos me assustou. Fiquei com receio de ter deixado o sonho escapar da boca e virar desejo antes de você ter certeza de poder sonhar junto. Não quero sonhar sozinha.

Thursday, March 28, 2024

Atlas

Deitada em seus braços ouvi uma história que começava assim: Depois de lutar marcialmente contra seus tantos deuses, Atlas pousou seu mundo em mim. Descarregado de seu encargo, pôde arregaçar asas largas e alçar voo sem se queimar – Ícaro é outro homem, não ele. Esse tem peso de vulcão e, se ele incendeia, é no meu sol com a intensidade de chama que quica no peito e mergulha alma adentro. Ele tem costas de prata e leveza acrobática de menino. Na extensão ampla de seus arcos, nadei o vasto de seu oceano atravessando pilares rumo à nossa Atlântida. Senti seus dentes cravarem em meus ombros a voracidade da fome contida. Provei romãs em sua boca, ambrosias e todos os néctares que cicatrizam os cortes. Me assentei em seu corpo, transbordei pranto que nem eu sabia guardar e entreguei para ele meu colo – deita aqui no meu abraço e a gente descobre junto terreno esquecido, desconhecido, perdido dentre as tantas memórias e ideias novas do que pode ser o amor. Bem, esse foi só o começo da história que ouvi, o resto só Cronos pode contar.

Friday, March 22, 2024

Mar Azul

Who are you? Já ali, anos atrás, em uma manhã perdida no tempo, ficou uma impressão. Um marco sútil da sintonia do encontro. Sentado à mesa (busco na mente e acho que vestia uma camisa marrom), te assisti presente, ainda assim com um resto de chuva no olhar. Não lembro tanto das palavras trocadas, nem se quer do ano em que foi, mas lembro do seu jeito curioso, do modo como sua mão se movia, dos dedos brutos, do olhar doce, de sua maneira íntegra de ser e estar. Te vi terno, como se sua poesia irrompesse pelas frestas. Havia algo triste em você – pousou no meu peito o sussurro do mundo abaixo da sua superfície azul. Não cabia me aprofundar. Eu era uma das partes da sua matéria. Não havia clima ou flerte algum, mas no esbarrar dos corpos que atravessam nossos trilhos existe algo que se harmoniza só com alguns, a gente não escolhe. Naquele breve momento, não escolhi, e sobrou essa sensação quase pueril de alguém além do qualquer. 

 

Não sabia que tinha te guardado num lugar esquecido de uma esquina do Leblon assentada na memória. Muitos anos passaram até seu nome voltar em interrogação. Te li em palavras digitalizadas e lembrei de um sorriso seu em meio à nossa troca. Naquele dia não gargalhamos, não nos perguntamos nada senão o formal. Cada um tinha sua história. Agora, anos depois, sua escrita trouxe seu sorriso de volta. Não te conheço. Não sei nada além dessa impressão, o que também não quer dizer muito. Mas deu vontade de tentar descobrir. 

 

“Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.”

Friday, March 08, 2024

Gole

Deixou um gole de água na garrafa. Bebi no gargalo para tocar na sua boca. Deixei sua última gota escorrer goela abaixo, ainda provando seu jorro. Fiquei com teu gosto encruado no corpo, e com aquela risada pequena, de canto de boca, aquela que vi enquanto mergulhava num bando de canto do teu mapa. Desvendei vielas esquecidas, aportei nos picos, aterrissei meu peso no seu peito e derramei gargalhada. Um breve reencontro perdido no tempo, quase duas décadas entre ontem e a última vez que te vi, ainda assim, não pareceu ter espaço entre os dois, um momento entrelaçou no outro como se houvesse uma ponte entre a cronologia das coisas. Há algo de precioso no destrinchar do tempo. Se passarem mais vinte, fora as bananeiras, aposto que acontece a mesma coisa.

Friday, December 08, 2023

Cadeado

Não é fácil ser forte, escolher a razão ao invés da emoção. Escolher em contraste com ser escolhido. Dói me despedir. Sinto falta, saudades, vontade de compartilhar um bando de coisa, e tenho que me lembrar de todos os pontos que oprimiam minha integridade. Amor não é o bastante. Não que eu já te ame, mas mesmo se fosse tanto jamais valeria a pena. Não vale viver ataques velados em pequenos atos, uma construção de dinâmica dispare, onde você manda e eu acato. Eu queria deixar as diferenças de lado e mergulhar no bom, mas sempre chegava o momento que você insistia em enveredar o encontro pro desconforto. Nunca entendi onde você queria chegar quando encurralava minha diferença, quando testava minha opinião sobre questões que você já sabia que divergíamos. Era bom para você? Você queria guerra, eu queria romance. Mas não é só política, nossa diferença é estrutural. Você defende o oposto do que eu sou. Você projeta em mim toda sua hostilidade por tudo que tá errado no país, no mundo, você se ressente por eu não pensar igual à você. Eu me corto nos seus espinhos e não cicatrizo mais. Eu sou cafona, romântica e vazia de expectativas ao mesmo tempo. Quero dar a mão e andar junto numa parceria do dia a dia e não te seguir. Quero ir junto. 

Wednesday, December 06, 2023

O Discurso do Rei


A gente percebeu cedo. Eu escolhi não ver, não ouvir, não alimentar tudo que desde o início já se anunciava em avesso. Vi onde ia o buraco e botei um tapete por cima. Não falei do buraco, não provoquei, não me fechei, não cutuquei, mas volta e meia você soltava flechas de discórdia provocando conflito para testar minha reação. Eu pisava sobre o tapete, afundava um pouco, só para quicar em pirueta e cair em invertida. Eu inverti a narrativa pro romance. Você também. A melhor parte. Só que você tem direito a ser você enquanto me constrange por eu ser eu. Hoje você acordou sem me olhar, armou o estilingue e jogou mais uma pedra para ver como me batia, eu pensando se o dia abria. E o que não saiu da minha cabeça foi você falando que a sua ex-mulher focou na meta de fazer você se apaixonar por ela, contou com orgulho. Na hora respondi, “cruz credo, nunca precisei disso”, mas depois senti mais fundo o recado. O rei é amado, idolatrado, mas nunca mais se apaixonou desde quando ainda construía seu império. É que o rei se instaurou em si e se afastou do outro. Ele dita as regras, considerando o que quer pro súdito mas não o que o súdito quer. O rei proveja, mas o resto é imposto. O rei impera sozinho, me maneja pelo pescoço, mas não me dá a mão. E eu, rainha desse meu reino próprio que construí com tanto carinho, fico sem caber direito nesse lugar. O rei é perverso. Eu sou cafona. 

Monday, November 27, 2023

Rédea

Sexta-feira você me olhou diferente, sorriu riso aberto olhando no olho, disse tudo que eu queria ouvir sem nenhuma palavra e atravessamos a rua mais juntos do que até então. Você me segurou pelo pescoço, pelo ombro, pela cintura, me regendo pela calçada na direção do seu caminho. Eu me deixei levar, entregue à sua música, assim como havia previsto a rédea dada. Tinha te reparado ainda de dentro do táxi, calça clara, camisa escura e seu jeito firme de sustentar seu corpo no mundo. Você tem as costas largas do rey da Prússia, eu tenho as costas largas da floresta amazônica, nós dois temos o mar. Nesse encontro de dois (mil) mundos, há tantas costas para gente desvendar. Esse final de semana, pela primeira vez, dormi em teus braços, rolei na grama macia do seu peito em meio a sonhos eróticos e acordei pro tal café da manhã que te contei por escrito. E a gente segue assim, se expandindo juntos, se estranhando e se expandindo mais ainda. Dois polos opostos com o cerne parecido.

Sunday, November 12, 2023

Era Para Ser Um Soneto

Vou te escrever um soneto, talvez uma história de amor. É que o diabo se esconde no detalhe, naquele fim de palavra que saiu mais rouca da sua boca ali pela cozinha e eu tendo que disfarçar a torrente quente que faz nascente rachar. Mora também no riso de canto de boca, no olho no olho, ponta de língua, na nuvem de perfume e talco que fica no meu corpo quando entrelaça com o seu. Se teu peso me esmaga, eu derreto, me espalho, sustento tudo sem precisar de nada. É que você cabe bem em mim, vai encaixando nos cantos feito lava quente, inteiro, vasto, imenso. E eu que sempre tô no volante, sento no carona e te deixo me levar (e é difícil não ter a rédea, não quero a rédea, toma a rédea e me leva contigo à galope). A gente pega a estrada, desce pro parquinho e almoça com as estrelas.

Thursday, November 09, 2023

Café da Manhã

Posso te dizer a verdade, eu queria é ter tomado café da manhã, essa história de dormir separado (tudo bem, cada um com seu hábito), mas para mim, desperdício de pele. E sei que a diferença rachou o chão e você entrou em uma redoma de vidro que ficou difícil de transpor. Seu rosto ali fechado, mergulhado em considerações, enquanto eu desconsiderava o que diverge e regava as convergências. Não me assustou sua diferença, me surpreendeu no máximo, e sabia das dificuldades envolvidas se encaradas no olho, mas nem tudo precisa de palavra (inclusive, talvez até nem mesmo esse texto). Eu via ali na bifurcação das ideias opostas um lago alheio ao mar que estávamos nadando. Se os olhos botassem a lupa no que havia em abundância e não em escassez, sabia que poderíamos flutuar na corrente quente das congruências. Ao adentrar caminhos que não os familiares, expando meu tamanho em novos atravessamentos. Nada era para mim pedregulho, quiçá uma pedrinha daquelas chatas que fica presa na sola e você sente quando anda, e talvez ela se ajuste ao sapato, talvez se dissipe em poeira, talvez você a tire com a ponta dos dedos, talvez ela não saia mais. Ainda assim eu continuava andando. Mas você ali frio, sentado do outro lado da mesa de plástico, óculos escurecendo o olhar e nenhum sorriso em vista, me parecendo preso no incômodo ao invés dos prazeres, me fez sentir batendo num muro alto erguido bem no meio do caminho de pedrinhas preciosas. Não sou boa com muros, tendo a puxar meu freio de mão, até mesmo para não me esborrachar. Tenho meus muitos defeitos, dentre eles a habilidade de entrega proporcional à de proteção. Ali sim me assustei, não com seu conteúdo às vezes controverso para mim, mas com seu modo de se fechar, mesmo ainda pedindo por mais. E como acredito no encanto das coisas, na beleza do que só se dá na integridade da entrega, prefiro sempre o riso largo, o abraço apertado, mesmo no difícil eu prefiro transbordar. Meu freio foi o muro baixo que consegui construir frente ao seu, quando na verdade queria te sacudir o ombro, dormir de conchinha e despertar pro café da manhã.

Tuesday, October 24, 2023

Branco

Vi tudo branco. A blusa. O cabelo. A luz. Senti o sopro da sua brisa em meio a leds e neons. Assisti no fundo do seu riso o menino dentro do homem. Te vi inteiro. Todo seu torpor estampado no verde dos teus olhos largos. Provei teu entusiasmo preenchendo o espaço com a torrente de palavras que desencadeou, eu já nem lembro mais – a gente falava de mar, de escrita, de mundo e mergulhava noite a dentro sem olhar pras horas escorrendo entre os dedos. Você me perguntou onde a gente podia dançar. Uma conversa. Um estalo no tempo abrindo uma porteira nova na estrada. Adentramos o portão. No caminho, melodias enviadas por satélite, voando até o céu e trocando de mãos, o tesão se costurando na harmonia das tantas histórias cantadas e escritas. E veio o tal do sorriso que atravessa o peito por trás da rotina dos dias, o barato do desvendar aos poucos o outro, ir descobrindo os detalhes e o todo. Aí teve a transa que começou no encaixe do abraço que virou beijo e, antes mesmo de você me adentrar, eu já transbordava. Coisa de pele. Depois veio tudo mais. O peso do teu corpo, seu cheiro, nosso gosto misturado, a troca, o riso. Um bando de barato. Aonde vai dar, não sei. A gente nunca sabe. Eu prefiro o presente.

Sunday, October 15, 2023

Abraço

Abre os braços bem largos, expande o peito além do limite, rasga o cerne ao meio e deixa caber mais. Deixa as extremidades se esticarem pro mundo e abraça o céu, as estrelas, a porra toda. Respira fundo o entorno, absorve o que te comove e anda junto. Sabe aquele lugar que sorri dentro da gente e pulsa por inteiro a abundância do sentir? É um botão que a gente aperta num canto de si e que desperta o que dorme lento nos dias anuviados da mente. Uma lente. Um jeito de olhar para tudo e qualquer coisa e deixar que os sentidos toquem o mundo com dedos de pétala. Tudo são flores, mais ainda os espinhos que apontam o contraponto das escolhas desalinhadas com o que pode ser bom. Qual o sentido das coisas se não nos tocar? Se transforma com o ar como o vento voa em correntes quentes e frias, as marés altas e baixas e suas correntezas indicando o sentido dos caminhos. Não nada contra. Não se afoga. Não se afoba. De sempre só o hoje. De eterno só o agora. De tudo só a vazio que a gente vai preenchendo com a gente que a gente cria em si e no encontro com o outro. E se o outro não é só alguém, é tudo, as plantas, as águas, as coisas, a temperatura e textura do dia, noite, madrugadas à dentro peito à fora; se nos relacionamos com tudo e todos o tempo todo e o silêncio é só a ausência de voz humana externa, porque a interna quase nunca para, nem dormindo, nem sonhando; se o silêncio é só o barulho ruidoso dos detalhes invisíveis que quase nunca prestamos atenção, o pequeno ronco do infinito que mora em cada segundo, cada escolha, onde fica a paz se não na habilidade do encontro com o sublime? A solidão é barulhenta, a gente que escolhe a música numaa dança com os movimentos internos.  Em que frequência você toca?

Thursday, September 28, 2023

Eu

Um frasco pequeno de vidro duplo

Espesso 

E ainda assim delicado

 

Uma garrafinha colorida

Transparente 

Feita de múltiplas camadas de diferentes espessuras 

 

Basta olhar com atenção que o conteúdo se revela

Ainda assim, a imensidão se contém no pequeno espaço que lhe cabe

Mera película do universo comprimido parede a dentro

Transbordado palavras fraseadas gargalo à fora

 

Não se aperta com força

Não se coloca em prateleira

Não se completa com outro líquido

Não se esvazia

 

Ela é inteira 

Mesmo às vezes despedaçada

Só quebra quando acaba

 

Uma garrafa cheia de mensagens escritas 

E tantas outras secretas embutidas no silêncio ruidoso de seu turbilhão

Se perde para se encontrar

Afunda e emerge mais cheia

 

Uma garrafa que não nada sozinha

 

Conversa com marés

Se assola de céu

Mergulha nos ventos

É tomada por chuvas 

Se entrelaça com o todo em sua dança com o gradual das tantas cores dos dias

 

Cada olhar a lê conforme sua lente

Seu teor só ela sabe

Só ela transmuta seu invisível impalpável 

Em novo de novo

 

Uma garrafa auto reciclável

 

Segue seu baile

Reluz brilho por mares distantes

Atravessa tormentas e plenitudes

Aporta em certas costas

Se abstendo de olhares foscos e solos secos


Uma garrafa

Aberta pra leitura 

Fechada pro consumo


 

Tuesday, September 05, 2023

TEMPERANÇA

Você se move lento, às vezes até o olhar fica com preguiça de se abrir por inteiro. Disse que é timidez, quiçá uma idade antiga que permeia sua juventude. Já eu olho e acho que é seu jeito de se proteger da dor, de olhar pro terror com a isenção de quem se defende, a tal calma que você mencionou quando o mundo se despedaça e você é tomado por temperança. Você que lida com o desespero no dia a dia e entra em cena para resolver o trágico, se educou a ser forte. Mas se proteger da dor é também se proteger do encanto. Você é a solução do outro, no mínimo a opção mais sensata. Qual é a sua solução para si?

 

Disse ainda que não se apaixona faz tempo, mais de década, cercado de um mundo sem brilho em que o olhar atravessa sem mergulhar no profundo. Ah, a temperança... Fiquei ali te ouvindo, encarando sua tristeza dentre sorrisos e perguntas. Te vi inteiro na melancolia que mora em seu olhar – você disse que vem de ter poucos amigos, da solidão, e eu que amo a solidão, convivo com ela desde sempre e a defendo com unhas e dentes, ainda assim não conheço tanto a constância da tristeza, e sim o mergulho no profundo a que ela me leva e que depois me quica de volta pro mundo mais forte e disposta ainda. Então tendo a achar que é mais sobre uma lente pras escolhas do que sobre ser solitário. E pensa bem sobre suas escolhas. O que te moveu até aqui foi tudo além da comoção, e digo no sentido exato de comover, correlacionar, de ser impactado pelo encontro, pelo encanto, e de se transformar através do que te revira do avesso? Você não escolheu avessos, você escolheu um trilho, botou seu trem sobre ele e foi tocando para frente, conquistando parada por parada um troféu atrás do outro, agora descobriu que não é o bastante. Não bastam as vidas salvas, as férias, as conquistas, os one night stands. Não basta. Algo te falta. Seu olhar grita pela força do que vai além do controle, pelo brilho que tilinta para além de qualquer escuro. É que o preço da frieza é o frio. Há a temperança.

 

E talvez, arrisco aqui dizer, que o caminho seja se jogar no que você não domina, no que te assusta, no que te tira do trilho, da segurança das suas tantas habilidades adquiridas. Talvez seja sobre ter menos a rédea em suas mãos, e “indomar” seu leão, ou escorpião, sei lá. Mas se jogar sem saber onde isso vai dar, se arriscar a errar, a perder, a se estraçalhar para se descobrir mais inteiro do que nunca, porque cada vez que a gente se racha em mil, a gente descobre de quais pedaços somos feitos. Quanto mais me quebro, mais segura fico do que sou, e mais pronta para me quebrar de novo por saber que nunca me perco de mim, pelo contrário, me construo cada vez um pouquinho mais. 

 

Talvez se perdendo um pouco de si, você se encontre mais do que nunca. Mas quem sou eu para saber... Meras impressões de um breve encontro.

Sunday, September 03, 2023

Sobre o Encanto

          Ando ouvindo a mesma queixa, encontros que se dissolvem no trivial. Mulheres que sofrem com uma repentina quebra de decoro, uma desconexão sem aviso prévio e um consequente apego pelo que já não é mais. Confesso que não me identifico com o apego, mas entendo a frustração. É que o desinteresse do outro pulveriza o meu interesse no ato. Se o outro se desconecta, meu desejo perde o sentido. O estímulo estimula – só floresço na reciprocidade.

         O encontro se dá na comoção, essa correlação que vivemos com as pessoas que interagimos, seja amigo, ficante, romance, namoro, se relacionar com o outro é se co-mover. E se comover demanda integridade na entrega, honrar o que é despertado na gente sem medo de se mostrar por inteiro. É na vulnerabilidade que o mergulho se aprofunda. “Ah, mas tenho medo de sofrer...” então morre, encurta logo a possibilidade da dor matando o risco de ser feliz. “Tô me envolvendo demais, melhor me proteger...” Boa, fica aí no cinza e me diz se dói menos a longo prazo.

         Esquece essa história de futuro, mera rede de suposições das neuroses. Não importa onde as coisas darão, mesmo porque a gente nunca sabe de fato, mas se a gente rege o presente focado no resultado, mais ainda no medo dele, e mede cada ato para ganhar num jogo de força de quem está por cima ou por baixo, sobra um jogo de egos e não de amor. O jogo mata a espontaneidade da troca. Não é sobre expectativa, é sobre o modo de se entregar ao que nos encanta. E se encantar é se arriscar, é ir além do que a gente controla. E se o sofrimento é proporcional à felicidade vivida, os dois andam de mãos dadas com a abundância do sentir – quem não sofre não foi feliz, não se comoveu, não viveu, mesmo porque viver sem encanto é sobreviver, é caminhar pelo mundo alcançando metas, dando conta do trivial e se protegendo justo do que faz brilhar os olhos. 

         Não me venha tornar o encontro ordinário que eu corro pro outro lado. Ao menor sinal de jogo ou desinteresse, meu encanto esvazia seu balão e fecho a tampa de um tabuleiro com peças marcadas demais, porque o extraordinário nada mais é do que botar uma lupa sobre a beleza das coisas e deixar que elas transbordem seu brilho: pode ser uma olhada pro céu ou um beijo na boca. Inclusive, falando em beijo na boca, o que é o encontro sexual se não um baita avatar. Essa conexão de línguas, de penetrações íntimas, em que um talo conecta no outro e as energias se misturam em uma só vibração circular de tesão. Beijar não é trivial, transar então é pura conexão. 

         Então, amiguinhos que sofrem com o desencanto alheio, bola para frente que atrás vem gente. Se alguém te deixa ir, vá sem olhar para trás; se alguém te trata trivialmente, busca em você o extraordinário; se alguém te desmerece do nada, se mereça. Mesmo porque esse apego pós rejeição é mais ligado ao ego do que ao querer. Será que o que te sobrou foi amor ou insegurança? Será que vale a pena viver qualquer relação, ou se manter com alguém que te trata com migalhas e que ocupa o espaço de um potencial encontro incrível, só pelo medo da rejeição? Será que quando um parceiro joga fora algo que ele dizia brilhar, não fica mais evidente a covardia dele do que a dúvida sobre seu próprio valor?

         Os amores passam, a gente fica. Não acredito no para sempre, entro nos amores tomada pela força da infinitude, mas ligada na possibilidade de um eventual fim, e acho que cada encontro tem seu tempo mesmo, alguns meses, outros anos, alguns dias, e nem por isso são menores. Seja do tamanho que for, jamais vou me proteger de me encantar. E sei que passarão eventualmente – poucos são os sortudos que vivem um amor feliz até o fim da vida – mas para mim o tempo que o amor morar em mim tá valendo, e quando ele passar, vai doer, mas outros virão.

Monday, August 28, 2023

Xadrez

Em minha mão, te despedaço. Antes do tamanho do meu corpo, agora uma ínfima pedrinha craquelada, seca, te desfaço em poeira entre meus dedos. Nunca é bom despertar esse meu lado. Me descolo da ternura e visto armadura. Estraçalho sua força em grãos de areia, te espalho desentendido do que pelo foi acometido, achando que saia por cima, voltou por baixo, desconcertado com o próprio desatino. Detesto jogar porque sempre ganho. É chato para mim. No terreno do poder tenho ferramentas demais. Domino a arte da articulação emocional, controlo o leme do barco. Te rasgo no meio, viro do avesso e descarto o que sobra justo quando sentia em tuas mãos a rédea. É porque detesto deselegância, esse modo juvenil de se impressionar com o próprio reflexo na paixão do outro e se sentir superior. Nada sexy. Achar o outro menor por te desejar muito. Talvez tenha razão, o outro só pode estar louco, cego, bobo para te achar que vale tanto - o objetivo é não ser querido, aí sim faz sentido. Então te trato assim, como uma peça qualquer de um jogo vencido. De rei a peão no tabuleiro do desencontro. Te embaralho em minha mão e te descarto em uma solitária que minha vó me ensinou, e a vó dela ensinou para ela e que se houvesse mesmo Eva teria sido desde então, ou dos macacos mesmo que também regem seus bandos com jogos de poder. Bato o olhar e desvendo até o fim a coreografia das suas cartas. E é sempre a mesma coisa, basta eu montar meu xeque-mate pro outro se deparar com a rota que escolheu. Tarde demais. O vaso se quebrou em mil cacos, as flores se despedaçaram pelo chão. Pego a pétala mais linda que restou inteira, a olho com atenção, a mastigo entre meus dentes até engolir só o que espremi do teu bom, e cuspo seu bagaço na calçada violeta por onde meus pés pisam a caminho da feira.

Sunday, August 27, 2023

RABISCO

Sublinhei uma frase num livro e escrevi seu nome com sobrenome para ter certeza de em quem pensei quando primeiro a li. Já me despedia, prestes a começar a jornada do esquecimento, quando te engaveto no lugar do que atravessa e não fica. Me despeço precipitada do que se afasta. Sinto a distância se expandir e corro para o lado oposto passadas largas. Corto com a faca amolada das grandes escolhas seu gosto e ponho no pote do que se esvazia. Fecho a tampa sem permitir que suma por inteiro. Guardo em vidro grosso o que sobrou do encanto para que ele se reste assim na prateleira das memórias. Nunca gostei do amargo, então deixo que o doce sobreponha qualquer outra lembrança. Aquele último pedaço da sobremesa deixado no prato propositalmente para não findar de vez com a ternura que, por um instante, às vezes tão breve quanto uma mordida, senti na boca. Preservo em silêncio a imagem do que foi, como um retrato amarelo de um álbum com poucas fotos. Só floresço na reciproca. Deixo chover todas as gotas do seu rio e selo a fonte com cimento fino. Te deixo ir. Não pergunto. Não insisto. Apenas te assisto indo e me despeço, como que observando o brilho de uma estrela esvaecer até desaparecer por trás de uma única nuvem que escolhe aquele pedaço de céu para nublar primeiro, eu que botei ela ali para cegar tua imagem o quanto antes, para mantê-la sempre ainda como aquele primeiro sorriso, é ele que escolho guardar da gente. 

PIXELS

Se soltou do abraço e atravessou o céu um bando. Desenhou um triângulo entre três continentes com sua rota pelas nuvens. Ela, lá no primeiro ponto do desenho, voando alto sem sair do lugar. Ainda assim pulsavam juntos um tambor que só bate dentro do peito. Dançavam um baile entre corpos longínquos, juntos mesmo de longe. Bastava fechar os olhos, mesmo de olhos abertos, para se abraçarem no escuro das memórias que se reinventam em retratos de um possível futuro. Lembrar era imaginar lembranças novas ainda nem se quer vividas e que, quiçá, jamais serão. Ainda assim, valia a pena sonhar. No fundo, era inevitável. Foi o que sobrou daquele breve grande enlace, a química que move mares internos sem painel de controle, apenas dois barcos que adentram o mar sem jamais precipitar que podem vir a desejar um porto em comum. E quem controla pensamento se não o afeto dos desejos?

 

Te vejo navegar por terras distantes. Assisto curiosa fragmentos de você por ondas de satélite que saem de mim até o céu, chegando em você, e vice versa – amor pixelado até o próximo abraço. Quando te penso ouço a frequência das ondas da nossa música tocando ao fundo em uma rádio que só nós ouvimos, músicas que ainda nem escutamos. Há sem dúvida uma longa distância, mas nem tanto entre os pensamentos. 

Monday, August 14, 2023

Espanhol x2

Transbordava dois amores. Tomada por dois furacões em colapso, rodopiava com o rufar dos tambores internos, espalhada na vastidão do sentir, do transbordar o que vai além da escolha. Não ocupavam o mesmo espaço, habitavam diferentes cantos. Era paralelo. Mexiam com coisas distintas dentro dela. Entre a fúria do orgasmo e do sonho, do agora e do possível para depois, do que ia além. Se fosse pelo racional, sabia qual escolher, mas a química gritava pros dois lados. Se compartia em desejos inversos e tão semelhantes. No entanto não havia cabo de guerra, divisão, apenas duas paixões a atravessando como as listras de uma zebra, entrecortada por polos opostos. Um o avesso do outro e ainda assim com a língua em comum. Talvez a culpa fosse do espanhol.

 

De um lado o que estava ali e não estava, o sólido que escorre entre os dedos, arenoso, difícil de juntar na mão. Um homem gigante como um tronco, potente como um cavalo, volátil como um menino. Um sexo selvagem. Um encontro orgástico e cheio de poesia. Arriscado, indeciso, perigoso. Do outro lado um homem enorme por dentro e grande por fora, louco e maduro, sério e divertido, entusiasmado. Um sexo doce e cheio de sonho. De um lado o aqui complicado, do outro o mundo lá longe simples. Mas o longe é sempre mais simples do que o real. 

 

O de lá não conheço os defeitos. Os daqui eu já conheço alguns. E os meus?

 

Deixa o Santiago ir embora. Empurra ele para longe do peito. Armadilha do caminho, repetição. Já morei nesse lugar. Já conheço esse homem. Esse pacote da salvação. Do carregar nas cotas e jogar para frente o outro enquanto ralento meu passo, saio do trilho e me perco no outro ao invés de me encontrar mais ainda em mim. Acalma esse coração, essa fome do mesmo, quantos meninos eu preciso para saciar minha fome adolescente do bonito. Da conquista. Da revanche. Da vingança do meu ego de menina feia. Vira adulta. Busca outro belo no outro. Me deixar ser comovida pelo que me transforma e não por como transformo o outro. Corre. Dá um salto largo e pula o muro para terreno fértil. Quero voar ou quero afundar? 

Visita

Seu sorriso do outro lado da porta. Um beijo. Um beijo que se estica e a gente brinca de pular a corda do tempo num desenrolar do entrelace dos corpos. Cabem mil horas no nosso breve. Sua superfície se adere a minha pele, acende fogueira e derrete o entorno. A gente se despede. Ouço o ecoar do seu riso. A música continua tocando.

50 Maravilhas

1.     Sua cara de adolescente abrindo a porta aqui de casa

2.     Seu olhar castanho me atravessando

3.     Seu sorriso de dentes longos

4.     O som do seu riso arrastado

5.     Seu cheiro hispano-caucasiano misturado com perfume

6.     Seu beijo sem pressa

7.     Sua língua

8.     Suas mãos 

9.     Suas unhas cortadas

10.  Seus dedos me adentrando

11.  Seu pau bonito me encarando

12.  Seu expressão quando me adentra

13.  Você mergulhado no meu molhado

14.  As coisas que você diz dentro de mim

15.  Te olhar enquanto a gente transa

16.  Seu toque

17.  Seu peso

18.  Nosso encaixe

19.  Seu corpo tremendo no gozo

20.  Seu gozo quente invadindo minha boca

21.  Seu gosto 

22.  Ficar abraçada com seu corpo nu trocando histórias

23.  Suas pintas que formam constelação

24.  Seu jeito de levantar as sobrancelhas quando enfatiza o que diz

25.  Seus países e línguas

26.  Seus voos

27.  Você falando espanhol

28.  O som da sua voz em cada língua

29.  A música que toca quando te vejo

30.  A musica que toca quando você vai embora

31.  Imaginar você dançando comigo bêbado, livre, feliz

32.  Transbordar você em poesia escrita

33.  Ver seu nome no meu telefone

34.  A primeira vez que te vi saindo do taxi

35.  Você arrumado para me encontrar

36.  Medir seus detalhes do outro lado da mesa

37.  Seu gosto por comida

38.  Seus pés brancos e semi-chatos

39.  Seu tamanho

40.  Sua doçura

41.  Sua loucura

42.  Seu entusiasmo 

43.  Seu abraço apertado

44.  O gigante que eu vejo por trás da sua humildade

45.  Seu jeito de ser pai

46.  Seu jeito de falar o que sente

47.  Suas declarações de encantamento

48.  Estar com você

49.  Nossa troca

50.  Nosso encontro

 

Feliz 50º aniversário 

Wednesday, August 09, 2023

Maço

Deixou o cigarro na estante, um maço me encarando em silêncio, consigo escutar sua voz. Não sei onde isso vai dar. Não importa. Me entrego até o talo, sem medo do amanhã. Danço contigo em cada segundo nosso sem pensar no próximo. Decidi esquecer o futuro.

À GOSTO

Vi de relance, à deriva em suas mãos, reparei de canto de olho que somam umas duzentas e cinquenta e sete pintas espalhadas pela vastidão do seu império alvo, branco como a hora mais clara. Não deu tempo de desvendar. Te vi inteiro querendo ver mais. Te olhei lá no fundo, algo sorriu dentro da gente. Me entreguei aos seu braços, mergulhei em seu peito quente, seu abraço envelope do meu corpo. Senti seu peso sobre o meu transbordando um pouco de você em mim, sua nudez atravessando a minha, nossas texturas se misturando. Fecho os olhos e sinto seu cabelo, sua pele, seu riso, sua boca, seu pau bonito, é lindo mesmo. Seu cheiro ainda tá em tudo.

Tuesday, August 01, 2023

IMPERFEITO

Um parágrafo do seu discurso, perdido em meio a nossa troca, se assentou em meu peito e me olhou nos olhos. Você se disse solitário, sozinho em outro país, com altos e baixos, e que às vezes, mergulhado em tristeza, tende a se fechar em si. Confesso que sorri, ouvi ali a toada do sino das coisas belas, do que é teu e vai além do que eu conheço. Ouvi o vestígio da sua vulnerabilidade e te imaginei muito mais do que já sei. Te vi mais humano do que nunca. Até então via um ultramaratonista da vida, cheio de disposição, com mil afazeres, de um lado pro outro, sem jamais reclamar ou destrinchar algum sentimento senão o de ir para frente. E de repente vejo uma fresta do que está além da superfície, justo eu que gosto de mergulhar fundo pelos corais densos e de tantas cores intensas que moram na profundeza de cada um. Uma manhã te perguntei seus defeitos e você não quis me dizer nenhum. Também disse que gosta de imperfeições, talvez eu mais ainda. Ouvi esse vestígio de uma dor já passada, amenizada e quis ver mais perto, escutar seu silêncio e te deitar no colo, acariciar seus cabelos, te deixar sentir o que te assola e estar ali, para trocar tudo sem precisar de muito. Para te assistir ser mais você e poder ser um pouquinho mais eu. Me pergunto o que passa em seu peito, seus anseios, suas dores, o que te comove e o que te tormenta, o que te emociona e o que te machuca. Gosto dessa camada. Sou boa com os percalços do caminho, gosto das dores e tenho vocação pro acolhimento, mais ainda para transformação. Então confesso que fiquei feliz de saber que algo dói, algo anseia, algo se contorce também em você. E o tempo pode estar ao nosso lado. Quem sabe um dia você me conta mais. 

Saturday, July 29, 2023

Casais

Uma mesa de bistrô de shopping, Ella toca nos auto-falantes enquanto os quarenta minutos até a peça passam mais rápido do que o tempo que eu gostaria de ter para comer. Um casal decide ir embora sem pedir nada, apressados para o teatro. Aviso do tempo até a peça e o garçom diz que meu pedido cabe na janela. O senhor da mesa ao lado me diz que todos no bistrô estão indo à peça das 20hrs, “deve ser boa”, alheio aos três teatros diferentes com peça às 20hrs. Sua companheira de mesa me olha com um sorriso entediado. Ele tenta engatar mais umas duas amenidades e eu me fecho com gentileza, evitando adentrar sua programação de sexta. Ele volta a atenção para sua companheira e eu entendo então sua tentativa de conversa. Ela, monossilábica, não engaja em nenhum assunto. Não importa o que ele pergunte, o quanto ele sorria e tente engatar uma história, se mantém desinteressada, à deriva em seu silêncio. Me pergunto se está chateada, mas ela solta um “o crepe tá uma delícia”, e ele abre um sorriso generoso como se tratasse de uma fala engajante. Se encoraja em contar mais duas coisas relativamente engraçadas, ela nem esboça sorriso. Me assolo com o aparente abismo entre os dois, imagino que ela seria mais feliz com um homem menos simpático, e ele cairia em êxtase com uma mera gargalhada de uma mulher. Imagino se um dia seus olhos brilharam um pro outro ou se engataram por uma gravidez indesejada em família careta, um casamento armado pela expectativa alheia, ou se se mantém juntos só pelo comodismo de pensar que a vida poderia ser pior ainda sem o outro. Ele olha pros lados, busca seu olhar, ela continua fechada. Mergulho em minha dramaturgia me perguntando se ela se delícia com algo além de crepe francês. Até que ele paga a conta, se levanta, espera gentilmente ela levantar, abre espaço para ela andar na frente e, já ao longe, dão as mãos. Me perco com o vazio de tal visão das mãos frias entrelaçadas, mas sou rapidamente arrebatada por um novo casal de idosos que se aprochega no lugar deles, dão um selinho antes de sentar, ele segura a mão dela sobre a mesa enquanto combinam a próxima viagem para Toledo. 

Thursday, July 27, 2023

Bola de Gude

No meio do disco um arranhão, um descompasso sutil, uma bola de gude perdida nas frestas de um chão antes de cimento liso em construção. Uma mera bolinha de gude que ecoa sua queda em um som mais alto do que seu tamanho, imprimindo sua ínfima linha por onde rola. Ela é palpável. Basta botá-la na palma da mão e guardar no bolso para virar memória, memento, token dos pequenos arranhões. Vi a bolinha numa frase tua, “Aquele tipo de encantamento que não sinto há anos, nem sei se ainda posso sentir de novo.” Foi como se tudo nosso até ali tivesse sido trivial, sem impacto maior do que a tal bolinha de gude rolando pelo chão. Para mim sempre houve encanto, além de toda diversão. E o tempo merece tempo para ajustar seu malabarismo com as bolas grandes e pequenas do caminho. Ainda ouço os sons do encontro. A música continua tocando. 

Saturday, July 22, 2023

Prioridades

Ontem você ficou mais do que queria. Hoje despertou com o gosto expirado de prioridade posta de lado. Acordou com pressa, se disse exaurido, cansado, poeira de si. Fiquei ali ouvindo o silêncio dos seus planos secundarizados, vi em seu semblante o véu fosco da culpa sobre a escolha tomada. E pode ter certeza que te entendo, conheço esse gosto na minha própria boca, gosto do que não atendi em mim, do que relativizei e empurrei para debaixo do pano só para crescer bola de neve no peito. Não quero ocupar seus espaços preenchidos, menos ainda distrair seu foco. Existo para agregar mundos, somar caminho, sem querer virar desvio de nada. Não gostei de te ver à deriva do seu porto bem ali do meu lado, saudoso do que não fez. Gosto de compartilhar desejo sem jamais sufocar pulsão. Não alimentemos sacrifício, nem gosto de obstáculo, só entrega plena, sem culpa. Dá próxima vez que te sentir assim, prometo que te deixo ir sem propor nem pedir, me fala também. Sei que foi bom e tals, mas prefiro você saudoso de mim do que comigo com saudades de algo. Prefiro ver seus olhos brilhando, sempre.